Entre outras coisas, somos uma espécie que organiza e deixa heranças. Mais do que usarmos ferramentas para modificar o nosso espaço natural – coisa que muitos outros bichos também fazem – nós somos capazes de preservar essas transformações e mantê-las, bem como os objetos usados para edificá-las, para as próximas gerações. Por muitos milênios, não podia existir conhecimento nem tecnologia isolados: o que eu aprendo precisa passar para frente, precisa ir para mais alguém, não pode morrer dentro da minha cabeça. A oportuna invenção da escrita permitiu que conhecimentos fossem armazenados de modo que, tendo posse do código, qualquer um fosse capaz de reproduzir essas heranças. Mas antes disso foram também milhares de anos tecendo sabedorias em forma de canção e história: além da rima e do ritmo serem mnemônicos, o ato de passar o ensinamento de maneira unificada e coesa consolida a importância dessa partilha. Narrativizar dá sentido e objetivo ao que conhecemos de novo no mundo e precisamos que os outros também saibam.
Com o tempo, porque organizamos, criamos categorias para dividir nossos conhecimentos – nossas histórias – e torná-los mais fáceis de acessar. Pense num mundo em que nada ainda tinha muito nome: o que vemos, claro, deve ter sido chamado de algo bem cedo (árvore, água, comida), mas como terá sido o salto de tentar comunicar o abstrato? Como nós humanos achamos a linguagem para descrever o que sentimos? Tente lembrar como foi que você reconheceu suas sensações mais primais pela primeira vez. Os primeiros humanos a sentir ansiedade, será que já souberem comunicar uns para os outros? Como colocar em palavras uma crise de pânico, antes de ouvir outra pessoa descrever? Hoje, nós nos reconhecemos primariamente nas narrativas dos outros – comparamos experiências e traçamos paralelos que nos permitem entender que o que sentimos é o mesmo que aquela outra pessoa está contando. Mas, antes dessa herança ser produzida, nós humanos precisamos criar as ferramentas.
Aqui começam os mitos: para entender o que não pode ser compartilhado materialmente – o que está apenas dentro da nossa cabeça e ninguém mais tem acesso senão pela nossa comunicação – foi preciso materializar essas angústias na forma de histórias que contavam não eventos específicos que marcavam o tempo daquele grupo, mas, sim, ideias abstratas e extrapoláveis. Os mitos também podem estabelecer referências que levem os membros do bando a se reconhecerem como parte de uma só coisa e trabalhem para objetivos comuns, aumentando não apenas a herança daquele povo como as próprias chances de sobrevivência da cultura. Entender a si e aos seus como feitos pela mesma coisa é o primeiro passo para cimentar com o outro premissas comunicativas estabelecendo de que ambos entendem o mundo do mesmo jeito.
Existem dezenas de mitos que explicam ou fundamentam uma mudança de hábito em larga escala, como quando Prometeu, o trapaceiro, engana Zeus e o faz escolher o sacrifício recheado de ossos, em vez do de carne: assim racionaliza-se um jeito de parar de desperdiçar tanto recurso precioso, como o animal que agora é alimento, sem a consequência da ira divina, pois o acordo é pétreo e o titã assume as consequências no lugar da humanidade. Antes de conceitualizar algo tão abstrato e específico como a ansiedade com a escassez, o medo de não poder prover alimento para o grupo, foi necessário fazer tratos com as forças da natureza (Zeus, por exemplo, é a fúria dos céus tempestuosos). Quando a humanidade já estava mais segura de suas ferramentas e habilidades, precisou imaginar meios coesos para poder absolver-se da dívida com seus deuses e, assim, herdar definitivamente aquilo que já havia categorizado para si.
Os mitos ajudam o grupo a navegar suas responsabilidades para com o espaço que ocupa, de modo que operam fora das categorias de realidade ou ficção – muito posteriores, aliás, a qualquer história. Não é verdadeiro nem falso que Prometeu foi acorrentado no Cáucaso por roubar o fogo do Monte Olimpo, porque o mito não é sobre nenhuma dessas coisas. É verdade que o fogo é roubado em dezenas de mitos por todo o globo, inclusive entre grupos que não partilham absolutamente nada em comum. Imagino o medo que não deve ter dado em cada primata como nós que esbarrou, sem aviso, no fogo pela primeira vez, sem nunca ter nem ouvido falar de uma coisa como aquela, a um só tempo matéria e energia. Também deve ter sido uma imensa contradição se ver de repente no controle do fogo, de posse dessa habilidade até então inimaginável de afastar a escuridão e tornar o alimento mais eficiente e prazeroso. Será que isso veio depois que a humanidade já conhecia o aspecto devastador e imparável do fogo? Como dar conta de todos esses conceitos, se não desmembrando em diferentes personagens que, numa história, vão se arranjar sequencialmente?
Conforme os mitos abundam e se substituem – depois de um tempo, já estamos convencidos de que os deuses não sentem falta dos sacrifícios nem do fogo – nascem novos tipos de histórias que cumprem outros papéis sociais, mais específicos e direcionados, e que geram ferramentas e objetos outros. O pergaminho, o códex, muito depois a prensa, e hoje em dia quando o teclado virtual de algum aplicativo não é em QWERTY eu sou tomada pela mesma ira de Zeus ao abrir o sacrifício cheio de ossos – tudo isso deu espaço para que nossas histórias focassem em diferentes aspectos de se estar no mundo. De modo geral, porém, porque durante a maior parte da nossa história precisamos carregar nossas heranças conosco a tiracolo, tendemos a construir em cima daquilo que já foi feito. Mesmo a variação existe em cima daquilo que já se consolidou como reconhecível. Daqui da nossa ponta, é desafiador tentar enxergar, retroativamente, o mundo a partir do ponto de vista daquilo que ainda não é, olhar para os objetos não como ferramentas que antecedem outras – o pergaminho que veio antes do livro que veio antes do iPad – mas como as referências das quais partimos para acrescentar itens ao nosso repertório criativo. Como pensar numa narração longa, coesa, com diferentes ambientações internas ao narrador e também externas, recheadas de personagens, antes de se pensar num livro que pudesse ser folheado sequencialmente e então comportasse essa história? Como pensar no livro, na fruição via de regra individual da leitura, antes de praticar a contação de histórias coletivamente?
Todas as taxonomias de que nos valemos hoje são heranças de milênios de trabalho humano aplicado, o que permite que não precisemos recomeçar do zero a cada geração o processo de entender a natureza e como podemos nos inserir nela. É graças a esse trabalho incessante de arquivologia do conhecimento, convenientemente separado em categorias a serem consultadas com cada vez mais facilidade, que a humanidade pode se dar o luxo de imaginar além da sobrevivência, além do agora, além das suas proximidades imediatas. Se fico curiosa a respeito da rocha que forma a terra por onde caminho, posso me contentar com algumas frases da Wikipédia que resumem literalmente centenas de anos de trabalhos de pessoas que tiveram essa curiosidade muito antes que tudo que eu já conheço existisse. (Querer saber o que não preciso para viver, aliás, é de uma ostentação sem limites.)
Mas me pergunto que conexões acabamos perdendo nesse caminho de incessante categorização – ou, em outras palavras, se talvez não haja uma necessidade cíclica de se preservar conhecimento sistematicamente e depois revisar o sistema, mexer nas categorias, redefinir conceitos. Não faz falta o entendimento antigo que se tinha do fogo, uma força da natureza que pode nos deixar a qualquer momento e que cujo uso precisa ser pago com imenso sacrifício? Em algum momento deixamos de entender que a energia para nos manter aquecidos e alimentados demanda esforço, um pacto com a natureza. Para fazer o carro funcionar, basta colocar gasolina, seja lá o que for isso – mesmo que intelectualmente eu possa responder que é um derivado de petróleo. Para mudar a temperatura da minha casa, eu coloco algum aparelho numa tomada e aperto um botão. Essas soluções são muito recentes na história da humanidade e sequer são de amplo acesso para a maioria da espécie, de modo que para nós, que dispomos em maior ou menor grau desse distanciamento seguro da preocupação com energia (ou a necessidade básica que for), só por meio das histórias somos capazes de compreender esse privilégio.
Semestre passado li um livro em que uma personagem desmaiava enquanto lavava a roupa, o que a professora da disciplina frisou muito na aula: lavar roupa naquele contexto demandava um esforço físico tremendo, subir e descer muitas escadas com um imenso fardo de roupas pesadas, esfregar peça por peça no rio, e carregar de volta a carga toda. (Eu já acho uma opressão terrível ter que pegar o elevador para lavar na lavanderia compartilhada do prédio, imagine.) Quantas histórias eu já havia lido sobre lavar roupa? Mais a fundo, quantas histórias eu já havia lido sobre o esforço físico que viver exige? Algumas heranças tecnológicas, que vão da abençoada máquina lava-louças que veio no apartamento até coisas que tomamos ainda mais como naturalizadas, como o encanamento, tornaram obsoletas histórias que, por outro lado, tinham o valor de nunca nos deixar esquecer que nada do que usufruímos se fez sozinho, por mágica. Recontar histórias, então, é uma oportunidade de resgatar jeitos de ver o mundo a partir de perspectivas que tornaram as nossas possíveis. Para piorar, em algum momento também começamos a achar que histórias sempre são verdadeiras ou falsas, falam a sério ou por diversão, encantam ou ensinam, de modo que não parece mais que podemos encontrar na literatura (e no cinema, nas séries, em videogames, enfim) conhecimento para viver.
Afinal, para podermos ser uma espécie que categoriza e edifica monumentos intelectuais para seus herdeiros, permitindo que a sabedoria duramente conquistada, contra todos os desafios que a natureza e os próprios humanos colocaram pelo caminho, foi necessário que nos tornássemos uma espécie que conta histórias.
Textos em que pensei enquanto escrevia:
Boyd, Brian. On the Origin of Stories. aqui
Le Guin, Ursula K. “The Carrier Bag Theory of Fiction.” aqui
Lévi-Strauss, Claude. “Overture to le Cru et le Cuit.” aqui